sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A instrospecção transformativa nos desenhos de Ricardo Cardoso

Post actualizado em 23 de Julho 2010
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"Morro no Altar de Mim" - Desenhos de Ricardo Cardoso, Turismo Municipal de Almeida, de 01 a 29 de Julho 2010.
"Morro no Altar de Mim" - Desenhos de Ricardo Cardoso, Posto de Turismo de Seia/ARTIS IX, Maio/Junho 2010.
“Morro no Altar de Mim” – Desenhos de Ricardo Cardoso, Fábrica de Braço de Prata, de 5 a 29 de Novembro 2009.
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Post com uma referência no blogue seiaportugal.

Painel 1

Sob a temática da identidade e do corpo, a exposição do jovem artista senense na Fábrica Braço de Prata consta de 15 desenhos repartidos por 3 painéis, ao longo dos quais questiona sequencialmente os auto-conceitos de interioridade e de identidade através das máscaras e poses exteriores do corpo. O projecto "visa questionar o que somos e a introspecção que fazemos de nós próprios(1).

A construção da sequência narrativa, ao jeito da banda desenhada, parte do exterior para o interior, de fora (corpo, máscara) para dentro (espírito, intelecto) e termina com uma reacção libertária. “O corpo não é o mais importante, mas sim o que habita nele, é isso que mais interessa representar(1).

Painel 2

Esta temática tem sido explorada, nas suas múltiplas vertentes, por diversos artistas. Em certa medida pode até considerar-se uma característica do expressionismo, mas Ricardo Cardoso acrescenta à necessidade de libertação, a meu ver, uma certa necessidade de purificação. Nietzsche: “Os mais cuidadosos, hoje, perguntam: “Como se há-de preservar o homem?” Zaratustra, porém, é o primeiro e único a perguntar: “Como se há-de superar o homem?” (2).

Painel 3

No primeiro painel de 5 desenhos de “Morro no Altar de Mim”, vê-se o artista enquanto restaurador e conservador de Arte Sacra (3) ou em poses contemplativas. “Este Projecto surgiu da ideia de egocentrismo, andar em torno de si, e a dado momento vai existir uma quebra, um sair de si que coincide com o momento em que se constrói conhecimento a partir do exterior(4). No segundo painel de 5 desenhos, dá-se uma transformação, “o sair de si”, a descaracterização. Finalmente, no terceiro painel, a desfiguração e desindividualização atingem o auge e são-nos mostrados em grandes planos auto-retratos distorcidos, com expressões lupinas.

“Morro no Altar de Mim” compreende-se melhor enquanto corolário (por ser totalmente explícito) de um tema que Ricardo Cardoso vem tratando desde 2008. Como tudo o que faz sentido na arte – e na vida – resulta de uma renovada percepção dos labirintos interiores do Homem, uma viagem que se faz muitas vezes à beira do abismo. Abrindo a exposição, Ricardo Cardoso cita Fernando Pessoa: “De que te serve o teu mundo interior que desconheces? Talvez, matando-te, o conheças finalmente…Talvez acabando, comeces…”.

Num trabalho anterior, “Confronto” (2008), o artista toma consciência de que o seu corpo alberga mais que um ser, ele próprio (auto-retratado) e um estranho, reflectido no espelho. “O corpo é um espaço onde só habita um ser, neste caso pretendi colocar um corpo (o meu) onde estão mais que um ser ou forças opostas, espaço de confronto e de divisão, pondo em causa o equilíbrio psicológico da personagem, podendo levar á loucura. O confronto trata-se de um jogo trágico ao qual Nietzsche designou por um jogo entre as forças apolíneas e dionisíacas, estando sempre em confronto, ou se sobrepondo uma à outra(6). A personagem reflectida no espelho invade a série de desenhos, em poses delirantes, terminando “virada para nós com um ar agressivo e animalesco, mas não é para nós que está a olhar, é para dentro de si para o confronto de forças que estão a decorrer em si, que dificilmente entraram em concilio, poderá é haver o adormecimento de uma delas, deixando uma prevalecer. Essas forças espirituais são tão presentes que praticamente se exteriorizam, deixando assim o observador perceber o tormento deste ser(6).

Noutro trabalho de 2008, “Procura de uma liberdade”, o artista ensaiou uma libertação de si próprio ao longo de uma sequência de 19 desenhos. O artista sente-se repartido entre o seu ser interior e o ser que tem de dar ao exterior, e representa a sua “morte espiritual, para que possa sobreviver como técnico de restauro de arte sacra, e ter dinheiro para viver neste mundo materializado e capitalista. E desta forma poder trabalhar naquilo que gosto, embora tenha de esconder algumas partes de mim e alguns dos meus ideais, ou seja, tenho de ter duas caras(6). Ou duas identidades, à semelhança de certos super-heróis da banda desenhada, de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, do mito do lobisomem.

A intensidade dramática das poses contorcidas e expressões atormentadas nos desenhos de Ricardo Cardoso, cuja energia contida faz lembrar a série de Paula Rego da “Mulher Cão”, estão igualmente na linha dos “retratos imaginados” de Francis Bacon, seja como representação da introspecção transformativa da personagem, buscando o âmago da interioridade, seja para emitir em todas as direcções o alerta de que a parte do ser humano que nos habituámos a designar por espírito nada tem afinal de angélico – e nessa medida poderíamos evocar alguns trabalhos (7) dos anos 70 do artista suíço Urs Lüthi (n. 1947). Recordo ainda uma exposição organizada por Luís Serpa em 1990, “Je est un autre” (8) e o registo de uma obsessiva busca interior numa série de auto-retratos desenhados de Pedro Cabrita Reis na exposição “O Rosto da Máscara”, em 1995, no Centro Cultural de Belém (9).

Pedro Cabrita Reis - CCB, 1995


Ricardo Cardoso nasceu em Seia em 1982. Reside em Seia.

Licenciatura em Artes/Desenho na Escola Superior Artística do Porto – extensão de Guimarães (2009). Curso de Conservação e Restauro de Arte Sacra – Madeiras do Cearte, Coimbra.
Membro da Associação de Arte e Imagem de Seia e da ARGO – Associação Artística de Gondomar.

Foi homenageado pelos Artistas Senenses na ARTIS IX (2010).

Expôs individualmente no Turismo Municipal de Almeida (Julho 2010), na Galeria do Posto de Turismo de Seia - exposição integrada na ARTIS IX (Maio/Junho 2010), na Fábrica de Braço de Prata (Lisboa, Novembro 2009), no Restaurante Velho Minho, Povoa de Lanhoso (2008), Whisky Bar, Prado (2005), Casa Municipal da Cultura de Seia (2004), Posto de Turismo de Seia (2002 e 2004), Hotel de Gouveia (2003), e em bares - Conta-Gotas (Seia, 2002 e 2004), No Limite (Seia, 2003), Preto e Branco (Seia, 2003).

Participou em várias exposições colectivas, entre as quais: Exposição EXIT’09 Sociedade Martins Sarmento, Guimarães (2009); Exposição Aberta da Povoa de Lanhoso (2008); Exposição no Castelo da Povoa de Lanhoso (2007); Exposição Aberta da Povoa de Lanhoso (2005); Exposição de Artistas da Argo, Auditório Municipal de Gondomar (2004); Artistas Senenses em Lisboa, Centro Cultural Casapiano (Belém, 11/09 a 03/10/2004); ARTIS I, II, III, IV, V, VI (Seia, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007); 7ª Arte Jovem/Prémio Galeria Jovem – Casa D. Ana Nogueira (São Romão, 2002); I, II e III Exposição de Arte da Biblioteca da Escola Secundária de Seia (2002, 2003 e 2004); IV AgirArte (Oliveira do Hospital, Dezembro de 2001); I, II e III Exposição Colectiva de Artistas Senenses (1999, 2000, 2001).

Realizou a performance "Sem Título: ...?" na ARTIS IX (2010). Ver no youtube.

(1)- Textos do autor no seu blogue.
(2)-Nietzsche, Friedrich, “Assim falava Zaratustra".
(3)-Empresa de Conservação e Restauro (CR), habilitada para as seguintes áreas de intervenção: talha dourada, esculturas policromadas, mobiliário, azulejo, metais, pintura mural, pintura de cavalete. Realiza ainda trabalhos de pintura artística.
(4)-Textos do autor no seu blogue.

(5)-Alguns artistas levam a problemática da libertação a extremos verdadeiramente físicos, como acontece nas mutilações cirúrgicas da artista francesa Orlan (n.1947),ou nas auto-mutilações da italiana Gina Pane (1939-1990).
(6)-Textos do autor no seu blogue.

(7)-Sobretudo em The Number Girl (1973) e Just another story about leaving, 1974, sobre o auto-retrato e o corpo.
(8)-Galeria Cómicos e Serralves, 1990.
(9)-“A Auto-representação na Arte Portuguesa”, CCB, 1995.

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