domingo, 20 de junho de 2010

OS GRANDES TRANSPARENTES


Poema de Nuno Júdice, "Receita Para Fazer Azul" (Meditação Sobre Ruínas, 1994), lido por Antonino de Resende Jorge na inauguração da exposição:

"Receita Para Fazer Azul

Se quiseres fazer azul
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelhoda madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compare-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão bem Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu."






Sousa Dias: “Não há arte a partir do interior, das profundidades do eu. Antes sempre como captura de “poderes” selvagens, nem interiores nem exteriores, nem subjectivos nem objectivos, mas entre os dois, entre-seres impensáveis, apenas vivíveis, sensíveis (...), definindo não um Mundo mas um Entre-mundo.” (1)

O ponto de partida sempre foi o desafio de captar ambientes e sensações através de formas e cores. Não se trata de uma mera representação mas sim de repetidos exercícios de fixação de espaços voláteis, com contrastes de luz, cheios e vazios, repletos de presenças e de ausências, sombras, personagens abstractos que “vão e voltam, atravessam os quadros, saem de um para regressar noutro, passeiam através deles” (Teolinda Gersão). Pairam, diluem-se na cena, desaparecem em seguida nos seus armários e armaduras de fantasmas emancipadores do homem, anjos e demónios libertadores.

(1) – Sousa Dias, “Arte, Verdade, Sensação”.

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