terça-feira, 27 de dezembro de 2011

TUDO ISTO É FADO

(Artigo publicado no jornal "Vivências...", nº4, dezembro 2011)

José Malhoa, “O Fado”, 1910, óleo s/tela, 152,5 x 185,5 cm, Museu da Cidade, Lisboa

A recente distinção da UNESCO, declarando a importância cultural do fado para a Humanidade (1) abre boas perspetivas de projeção internacional do espírito criativo português e das artes nacionais.

Para além dos poetas populares (com destaque para João Linhares Barbosa, o “Príncipe dos Poetas” do fado), os fadistas cantam com grande gosto e exemplar dignidade alguns dos nossos melhores poetas cultivados (António Botto, Sidónio Muralha, Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Ary dos Santos, Vasco Graça Moura,…) mas o fado enquanto acendalha do espírito relaciona-se bem com outras artes eruditas: o cinema, as artes plásticas e até a dança. Esse fado que é um sinónimo de destino, muitas vezes malfadado, sofrido, cruel, e por isso canção amarga e magoada.

Nem por acaso, a divulgação nacional do fado começou na década de 1930 através do cinema sonoro, popularizando na tela fadistas como Dina Tereza, Amália Rodrigues ou Hermínia Silva. Dina Tereza, hoje pouco recordada, interpretou a mítica fundadora do fado, Maria Severa, no primeiro filme sonoro produzido em Portugal e realizado por um português (José Leitão de Barros, em 1930). À distância de uma vida, em 2006, o cineasta espanhol Carlos Saura homenageou o fado como canção ibérica, relacionando-o com os ritmos hispânicos da música e da dança no documentário musical “Fado”. E aproveitando a embalagem internacional da UNESCO, o realizador João Botelho promete para 2012 um musical sobre o fado, protagonizado por fadistas e rodado em Lisboa.

Nas artes plásticas, o fado inspirou os maiores artistas portugueses dos séculos XIX e XX, como ficou demonstrado na importante exposição “Ecos do Fado na Arte Portuguesa Séculos XIX-XXI” (2), que decorreu em Lisboa entre julho e setembro de 2011. Ao longo desses séculos, a arte nacional contribuiu pouco para as artes internacionais mas foi absorvendo e consagrando os mais diversos géneros e modalidades artísticas, sendo possível encontrar uma ligação transversal relacionável com o fado, ou com as representações do fado, o que justificou plenamente a apresentação conjunta de obras de artistas tão diversos como Roque Gameiro, Columbano, José Malhoa, Almada Negreiros, Amadeo Souza-Cardoso, Eduardo Viana, Domingos Alvarez, Bernardo Marques, Stuart Carvalhais, João Abel Manta, Carlos Botelho, Júlio Pomar, Leonel Moura, Graça Morais, Paula Rego, João Vieira, Joana Vasconcelos, João Pedro Vale ou Miguel Palma.

Uma das curiosidades e méritos da exposição “Ecos do Fado” foi mostrar lado a lado as duas versões do mais famoso quadro de José Malhoa, “O Fado”, o que acontece pela segunda vez no século e em anos consecutivos (3), assim como dois estudos para essa obra: o Amâncio (1908) e a Adelaide (sem data). “O Fado” de 1909, mais pequeno que a segunda versão, foi apresentado ao público em 1962 através de uma reprodução no Diário de Lisboa, e pertence atualmente a um colecionador particular português. Supõe-se que terá sido um estudo para o quadro maior, de 1910, patente no Museu do Fado.

Ambos os quadros apresentam a mesma composição e retratam o guitarrista Amâncio e Adelaide “da facada” – assim conhecida devido à cicatriz na face que o pintor ocultou. O cenário evoca o interior de uma “alfurja” (antro, alcouce), onde se recompunham “das desditas ouvindo o fado que diz da sua má sorte e em que todas as trovas são de perdão” (4). A realização da primeira obra, pintada com esses modelos em pose, foi condicionada pelas frequentes passagens de Amâncio pela prisão e pelos seus reparos ciumentos ao modo como Malhoa pintava Adelaide.

Apesar do estatuto cultural que duramente conquistou ao longo do século XX até à recente consagração internacional, o fado não nega as suas origens humildes e o quadro de José Malhoa continua a ser a representação mais sensível do sentimento fadista e o melhor retrato do seu berço trágico.

Sérgio Reis

Notas:

(1) - A 28 de novembro de 2011, em Bali, o VI Comité Intergovernamental da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) declarou o fado como Património Cultural Imaterial da Humanidade. A candidatura propunha uma rede de cooperação institucional em estreita ligação com a sociedade civil, uma vertente de educação e formação, um programa editorial (livros e discos), a dinamização e revitalização de espaços tradicionais de fado e a promoção no plano nacional e internacional do universo e da cultura do fado.

(2) - Promovida pela Câmara Municipal de Lisboa através da EGEAC/Museu do Fado no âmbito da candidatura do fado a Património Cultural Imaterial da Humanidade.

(3) - A primeira vez foi em 2010, na exposição “O Fado de 1910”, realizada na SNBA em Lisboa a propósito das comemorações do centenário da República.

(4) - António Montês, “Malhoa Intimo”, Lisboa, 1950.


A "Illustração Portugueza" – 15 de Abril 1912

José Malhoa, “Adelaide”, estudo para “O Fado”. São conhecidos cerca de dezena e meia de estudos de Malhoa para essa obra.

“Adelaide”, óleo s/tela, 50,5X65,5 cm

Estudo para “O Fado”, óleo s/tela, 1908

José Malhoa, primeira versão de “O Fado”, 1909, col. Vasco Pereira Coutinho.

O trabalho do artista foi condicionado pela vida atribulada de Amâncio e pelas suas exigências púdicas em relação à maneira como pintava Adelaide. Malhoa também deu atenção às opiniões de terceiros quanto ao andamento da obra, desde populares, que passavam pelo seu atelier, ao próprio rei D. Manuel, que também terá sugerido alterações à pintura. Na 2ª versão, de 1910, Malhoa deu mais atenção aos pormenores e melhorou sobretudo os rostos das personagens.

Amâncio, desenho a carvão s/papel, 1910 – Museu do Chiado, Lisboa

Estudo, desenho a carvão s/papel, 1910 – Museu José Malhoa, Caldas da Rainha

Ema de Oliveira e Raul de Carvalho, reconstituindo a cena de “O Fado” em “Fado”, realizado por Maurice Mariaud em 1923.
Amália Rodrigues e Jaime Santos, reconstituindo a cena de “O Fado” em “Fado Malhoa”, realizado por Augusto Fraga em 1947.
João Vieira, “O mais português dos quadros a óleo”, 2005, impressão fotográfica, 300X365 cm, Museu da Cidade, Lisboa

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