domingo, 17 de junho de 2012

Como lidar com a crise: 3 fotógrafos na América da Grande Depressão

Com a crise instalada no vocabulário e no quotidiano de todos, nada melhor que evocar outras crises, para aliviar algumas queixas e compreender melhor o que se passa – porque, na verdade, “isto anda tudo ligado” (1). Nos EUA dos anos 30, fotografias “humanistas” encenadas serviram para passar a mensagem de que, apesar das dificuldades, do desemprego, da miséria e da fome, nenhum americano deveria desistir da esperança num futuro melhor. Era ainda a filosofia do “há sempre alguém em pior situação que tu, por isso deixa-te de queixas, levanta-te e vai à luta, por ti, pelos teus e pelo país”, reforçada em 1961 pela máxima de J. F. Kennedy, “Não perguntes o que o teu país pode fazer por ti mas sim o que tu podes fazer pelo teu país“ (2). Na banda desenhada, surgiram os super-heróis (3), cavaleiros andantes modernos com os atributos físicos necessários para espancar os vilões, frequentemente novos ricos gananciosos – uma figura com grandes responsabilidades no “Crash” de 1929 – e seus mandatários. No cinema, Chaplin adapta a personagem Charlot, o vagabundo cuja aparência e bons sentimentos passam a denunciar uma vítima do “crash” da Bolsa (4). Tal como o humor, extraordinariamente apurado em tempos de apertos económicos e/ou políticos, as artes são poderosos antidepressivos, as armas mais eficazes contra os malefícios psicológicos de qualquer crise. 

Entre 1929 e meados dos anos 40, os EUA passaram pela maior crise da sua história, a Grande Depressão, uma crise financeira criada pelos bancos americanos, com repercussões económicas e até políticas em grande parte dos países industrializados da época. Na Alemanha, por exemplo, ajudou o partido Nazi (“Nationalsozialistischen”) a conquistar o poder em 1933. Apanhado de surpresa com o “Crash” da Bolsa em 1929, o governo americano levou algum tempo a reagir à enormidade da desgraça e combateu a crise ao longo de uma década implementando um conjunto de medidas designado por “New Deal” (Novo Acordo). As principais medidas eram de natureza social, como a criação de empregos (aumento de obras públicas, diminuição do horário de trabalho) e de mecanismos assistenciais (seguro-desemprego e seguro-velhice para maiores de 65 anos), mas havia que tratar a parte psicológica e aumentar o ânimo de toda a nação. Foi então que a RA (Resettlement Administration), mais tarde designada por FSA (Farm Security Administration), um organismo federal criado pelo presidente Roosevelt no âmbito do “New Deal”, com o objetivo de promover o progresso rural) teve a ideia de contratar alguns escritores e fotógrafos para um programa fotográfico que decorreu entre 1935 e 1944. A fotografia de intenção social (concerned photography ou social documentary photography) teve origem no início do século XX mas só nos anos 30 se notabilizou como género, sobretudo graças à campanha da RA/FSA e às revistas de notícias do grupo da Time – que fundou em 1936 a Life Magazine, famosa pelas suas reportagens fotográficas de intenção social. Até aí, os grandes fotógrafos trabalhavam para os jornais, cujo negócio era vender notícias e por essa razão a imagem ficava quase sempre em segundo plano.Foram quinze os fotógrafos de primeira linha que trabalharam para a FSA: Walker Evans, Dorothea Lange, Gordon Parks, Theodor Jung, Edwin Rosskam, Louise Rosskam, Ben Shahn, John Collier, Sheldon Dick, Jack Delano, Russell Lee, Carl Mydans, Arthur Rothstein, John Vachon, Marion Post Wolcott. Tal como os escritores, seguiam as indicações criteriosas de Roy Stryker, diretor da divisão de informação da FSA, com o objetivo de mudar a imagem que a América tinha de si própria, “apresentar a América aos americanos”. O olhar triste e vazio de esperança de Allie Mae Burroughs (fotografada por Walker Evans em 1936) ou de Florence Owens Thompson (a “Mãe Migrante” fotografada por Dorothea Lange , 1936) mostraram a cada americano que não sofria sozinho as amarguras da crise, incentivando todos a ultrapassar as dificuldades, para o seu próprio bem e benefício do país.


"Dorothea Lange, "Mãe Migrante", 1936 

O que parece evidente nestas fotografias, é a intensidade dos conteúdos humanos, cruzando sentimentos e sensações em imagens de grande interesse social e complexo conteúdo político. Chamaram-lhes por isso fotografias “humanistas”, uma inspiração para o neorrealismo, também ele despoletado pela Grande Depressão. Com especial expressão no cinema e na literatura, o neorrealismo não prestou muita atenção à fotografia documental, que continuou a ser “humanista”, mas a fotografia documental americana deste período estabeleceu parâmetros formais e estéticos que marcaram a história da fotografia do século XX e permanecem hoje totalmente válidos, embora noutros contextos. Basta (re)ver algumas fotos premiadas nos diversos World Press Photo, por exemplo em 2011 e 2012.

Um das fotografias incontornáveis da época da Grande Depressão, exemplar em relação a tudo aquilo que fica dito, é uma foto magistral de Margaret Bourke-White, datada de 1937. Nessa foto, que pode ver AQUI, uma fila de negros para a sopa dos pobres em Louisville, corre junto a um cartaz onde se publicita o sonho americano “World highest standart of living” (O mais alto padrão de vida), podendo também ler-se “There’s no way like de American way” (Não há nada como o jeito americano). Comprometida com a LIFE Magazine, da qual foi a primeira repórter fotográfica feminina, Bourke-White não fez parte dos fotógrafos FSA mas também pretendia “apresentar a América aos americanos” através de imagens de grande oportunidade documental e conteúdo crítico, com inegável responsabilidade cívica. Anos depois, daria ao mundo um dos mais impressionantes testemunhos da barbárie nazi fotografando a libertação do campo de concentração de Buchenwald. Bourke-White foi a primeira mulher fotógrafa a trabalhar numa zona de guerra e a mais destacada fotógrafa americana da sua geração a correr mundo e a fotografar na intimidade grandes figuras mundiais desse tempo. São famosas, entre outras, as suas fotografias da mãe de Estaline (1931) e de Gandhi (1947), assim como impressionantes testemunhos fotográficos dos campos de concentração (libertação do campo de Buchenwald, 1945) e da guerra da Coreia (1950-1953).


Dorothea Lange nasceu em Hoboken, New Jersey, em 1895. Formada em fotografia pela Universidade de Columbia em Nova Iorque, trabalhou para diversos estúdios fotográficos nova-iorquinos até se mudar para San Francisco, onde abriu um bem-sucedido estúdio de retratos. Em 1920, casou com o pintor Maynard Dixon.Nos anos da Grande Depressão, foi contratada pela FSA e viajou pelos estados do sul e oeste dos EUA recolhendo imagens das condições de vida dos camponeses. Faleceu em 1965, vítima de cancro.


Margaret Bourke-White nasceu em Nova Iorque em 1904. Aventureira, percorreu o mundo como fotógrafa, tendo recolhido as primeiras imagens autorizadas em território soviético (1931), tendo fotografado a mãe de Estaline (1931) para fotografar Gandhi em 1947, testemunhar o extermínio de judeus nos campos nazis ou recolher. Foi a primeira repórter fotográfica das revistas Fortune e Life. As suas fotografias são conhecidas em todo o mundo e encontram-se expostas no Museu do Brooklin, no Museu de Arte de Cleveland e no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, entre muitos outros.Faleceu em 1971, com a doença de Parkinson.


Walker Evans nasceu em Saint Louis, EUA, em 1903.O seu trabalho ao serviço da F.S.A. foi determinante para a consagração como fotógrafo e a sua reportagem para a revista Fortune sobre os camponeses do Alabama na Grande Depressão foi considerada um dos expoentes máximos da fotografia documental e editada em livro (“Let us now praise famous men”). Em 1938, as suas fotografias integraram uma exposição do MoMA (Museum Of Modern Art de Nova York), a primeira dedicada por este museu a um fotógrafo. Faleceu em 1975.

Notas

(1) - “Isto Anda Tudo Ligado”, livro de poesia de Eduardo Guerra Carneiro (Chaves, 1942–Lisboa, 2004) publicado em 1970. A expressão, feliz, tem sido muito utilizada em diversos contextos, inclusivé por Sérgio Godinho, “Isto Anda Tudo Ligado” (letra e música) do álbum “Na Vida Real” (1986).

(2) - Discurso de tomada de posse como 35º Presidente dos EUA, 20 de janeiro de 1961. O discurso foi escrito por Ted (Theodore) Sorensen (1928-2010), que foi conselheiro de JFK entre 1953 e 1963.

(3) - No período da Grande Depressão nasceram os primeiros super-heróis da banda desenhada americana (Superman, Batman, Popeye) e outros heróis desenhados (Flash Gordan, Tarzan, Dick Tracy, Jim das Selvas, Mickey Mouse), primeiro nas tiras de jornais e como brindes, nas lojas, depois em forma de revista, dando início a uma das maiores indústrias da cultura do século XX.

(4) - O início da Grande Depressão coincidiu com a transição do cinema mudo para o sonoro e, nos anos 30, o cinema americano diversificou géneros e internacionalizou uma nova vaga de atores. Destacaram-se os filmes de Charles Chaplin, com destaque para “Tempos Modernos”(1936), as sonoras comédias anárquicas dos irmãos Marx ou as comédias românticas de Frank Kapra.Só em 1940 aparece um filme retratando os efeitos da Grande Depressão no oeste americano, “As Vinhas da Ira”, realizado por John Ford com base no romance escrito por John Steinbeck em 1939. Steinbeck receberia o Prémio Nobel da Literatura em 1962, em grande parte devido ao sucesso dessa obra literária popularizada pelo filme.

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