sábado, 2 de março de 2013

José Santos e a "Light Painting"

O Cristo na cruz resplandece e o espírito liberta-se em forma de ave. Foto de José Santos

Pelo final da tarde de ontem, teve lugar a inauguração da exposição de fotografia de José Santos, na galeria de Herman Mertens e Magda Vervloet em Vale de Ferro, com muito público e a surpreendente participação musical do jovem tenor Renato Santos. Chamado a apresentar a exposição, contando com algum desconhecimento do fenómeno da “light painting”, preparei algumas notas sobre este tema e sobre a fotografia de José Santos, que tentei explicitar na ocasião.

A “light painting” é uma técnica fotográfica que consiste em obter imagens através de fotos de longa exposição, movendo uma fonte luminosa diante da câmara fotográfica (“light drawing, light graffiti”) ou movendo a própria câmara (“camera painting”). À primeira vista, parece o contrário da fotografia convencional, mas a “light painting” também trabalha temas e assuntos concretos, exigindo abordagens muito precisas e mobilizando grandes meios técnicos quando se trata, por exemplo, de reforçar os conteúdos emotivos da cor em fotografias de paisagens ou monumentos, que requerem desde logo condições extraordinárias de iluminação artificial.

O processo utilizado por José Santos enquadra-se mais na “camera painting”, pois recorre sobretudo a movimentos da câmara e do zoom. À noite ou num ambiente escuro, a câmara fotográfica torna-se pincel e as luzes são utilizadas como as cores na paleta, para dar a ver diferentes aspetos da realidade ou criar imagens totalmente abstratas. Na realidade, o processo da “light painting” é tão simples de entender e fácil de executar que abundam, na Internet, imagens de todos os tipos e para todos os gostos, desde a experiência mais elementar às obras de autênticos artistas – como os norte-americanos Brian Hart, Eric Staller,  Jason Page e Elizabeth Carmel, o argentino Arturo Aguiar, a canadense Tatiana Slenkhin, o francês Julien Breton ( Kaalam), o japonês Tokihiro Sato e, naturalmente, o português José Santos.


Um desenvolvimento do ato de fotografar (literalmente, “escrever com luz”), a “light painting” aproxima a fotografia da pintura e da performance. Ao longo do século XX, os artistas utilizaram criativamente os meios da fotografia. O primeiro artista a explorar a técnica da pintura com luz terá sido Man Ray, em 1935, e a novidade não escapou à curiosidade de Pablo Picasso, que integrou algumas experiências com luz na sua vasta obra multidisciplinar. Considerando que os desenvolvimentos da arte contemporânea permitiram à fotografia tornar-se abstrata, entre outras coisas ainda ontem inaceitáveis (como as espetaculares fotografias recortadas de Germán Gómez), não admira que o fotógrafo se assuma cada vez mais como artista. A arte contemporânea carateriza-se, sobretudo, pela articulação de linguagens artísticas, pela interação de conceitos, espaços e metodologias – por muito pouco permutáveis que pareçam. A “light painting” é hoje creditada ao mais alto nível (a Photographic Society of America, por exemplo, dispõe de consultores para essa área específica) e a vulgarização da fotografia, ao alcance do mero utilizador de telemóvel, tem levado os fotógrafos a procurar cada vez mais o espaço das galerias de arte para desenvolverem os seus projetos noutro patamar de exigência e manterem um estatuto diferenciado.

No caso particular das obras de José Santos, apesar de se assumir como autodidata da fotografia (1), sobressai imediatamente o sentido da composição, tal como o entendemos na pintura, e o elaborado uso da cor através da criteriosa manipulação da luz. Nos seus trabalhos abstratos, cujo melhor exemplo é a série "Luzes", predomina o diálogo das formas e harmonia das cores, despontando e evoluindo com ritmo e força visual no fundo negro – o nada de onde tudo emerge. Nos seus trabalhos mais figurativos (séries "Cristos" / "Paixão", por exemplo), é clara a preocupação de ir além de mera representação, do visível imediato, extraindo das formas efetivamente fotografadas algo mais que uma simples imagem, o seu halo mítico, a sua energia própria, a sua luz.

E por aqui entendemos a coleção de imagens que integram esta exposição, intitulada “Paixão” por abordar o momento crucial da paixão de Cristo, a morte na cruz. Na sua origem latina, o termo “paixão” significa “sofrer ou suportar uma situação difícil” mas usamos também este termo para designar o sentimento de entrega total a uma pessoa, a uma atividade ou a um ideal. O momento religioso que se aproxima, a Páscoa, os mais profundos sentimentos humanos do autor, José Santos, e a sua autêntica paixão pela fotografia, explicam o tempo e o modo desta exposição.

Simples cruzes, o símbolo máximo do cristianismo, grandes cruzes de altar ou figurações de Cristo crucificado, as fotografias “pintadas com luz” de José Santos destacam a convicção cristã de que Cristo é luz e redenção. Da cruz vibrante de luz, faiscando no fundo da noite escura, à imagem que parece contorcer-se na cruz ou acenar tristemente, vislumbra-se um complexo percurso de emoções, um mapa para a via-sacra mais interior de cada um. E a exposição de José Santos em vale de Ferro termina com uma proposta desconcertante, nada canónica, irradiando luz para as consciências: duas imagens da crucificação, lado a lado, uma no masculino e outra no feminino – evocando ao mesmo nível mítico a Paixão da mulher, a pouco dias do seu Dia Internacional, 8 de março.

Alguns sites sobre LPP:
Lightgraff (França)

(1) - Autodidata da fotografia, José Santos expõe individualmente desde 2009 (Museu Grão Vasco, Viseu, 14 de fevereiro a 21 de março). Em Maio de 2009, mostrou o seu trabalho em Seia, expondo depois no Museu de Lamego, Biblioteca Municipal de Cantanhede, Museu de Resende, Museu Diocesano de Lamego, Espaço João Abel Manta em Gouveia, Sede do Rancho Folclórico Pastores de São Romão, Posto de Turismo de Seia, Casa da Beira Alta no Porto e Casa da Cultura de Seia – uma exposição intitulada "Luzes", que decorre até final de março 2013.
Mais fotografias de José Santos em olhares.sapo.pt.

Vista parcial da inauguração



Algumas obras da série "Luzes" (2009):




Mariza, 2009

Guitarras, 2009

José Santos

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